sábado, 18 de agosto de 2012

Quando eu estava em Pequim, na China, administrei o workshop Hearts of the World. É um projeto que comecei há cerca de dois anos com crianças do mundo todo, no qual dou a elas um coração humano apenas delineado em um papel, para que pintem por dentro da maneira que quiserem. Em Pequim, especificamente, fiz o projeto com crianças de um orfanato para cegos. Lá havia um menino de nove anos que nasceu cego. Eu não sabia se ele tinha entendimento do que eram as cores e como uma criança cega poderia pintar. A primeira coisa que fiz, então, foi perguntar qual cor ele queria. Ele disse azul. Ao receber a tinta, ele pintou o coração todo de azul e disse que estava pintando o céu. Depois, pediu o amarelo para pintar o sol, o branco para pintar as nuvens e o verde para pintar a floresta. No fim, pediu o preto e cobriu tudo o que tinha feito. Perguntei o que ele estava pintando e ele disse: “Estou pintando a escuridão”. Perguntei o porquê e ele disse que a escuridão é linda, e que há muitas luzes coloridas nela. Essa é minha experiência mais memorável com as cores. Mesmo aquele lugar onde elas parecem não existir está repleto delas.
 
nicolina (artista plástica norte-americana) – revista plastic dreams 08 melissa magazine


terça-feira, 13 de março de 2012

O tempo passou.
Dizem que o tempo é remédio para tudo.
O tempo faz a gente esquecer.
Há pessoas que esquecem depressa.
Outras apenas fingem que não se lembram mais...

o tempo e o vento - o continente - erico verissimo

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Num restaurante do centro, Haydée Lange e eu conversávamos. A mesa estava posta e restavam fragmentos de pão e possivelmente dois cálices; é verossímil supor que havíamos jantado juntos. Discutíamos, acho, um filme de King Vidor. Nos cálices devia haver um pouco de vinho. Senti, com um início de tédio, que estava repetindo coisas já ditas e que ela sabia disso e me respondia de forma mecânica. De repente me lembrei que Haydée Lange morrera havia muito tempo. Era um fantasma e não sabia. Não senti medo; senti que era impossível e talvez descortês revelar-lhe que era um fantasma, um belo fantasma.

O sonho se ramificou em outro sonho antes que eu acordasse.


jorge luis borges - atlas

sábado, 30 de abril de 2011

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar – o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o.


clarice lispector - laços de família

quarta-feira, 30 de março de 2011

Me lembro que estava num hotel em Buenos Aires, vendo na tevê um drama de boxe. Desliguei o som, só ficou a imagem do lutador já cansado (tantas lutas) e reagindo. Resistindo. Acertava às vezes, mas tanto soco em vão, o adversário tão ágil, fugidio, desviando a cara. E ele ali, investindo. Insistindo. Mas o que mantinha o lutador de pé? Duas vezes beijou a lona. Poeira, suor e sangue. Voltava a reagir, alguém sugeriu que lhe atirassem a toalha, é melhor desistir, chega! Mas ele ia buscar forças sabe Deus onde e se levantava de novo, o fervor acendendo a fresta do olho quase encoberto pela pálpebra inchada. Fiquei vendo a imagem do lutador solitário- mas quem podia ajudá-lo? Era a coragem que o sustentava? A vaidade? Simples ambição de riqueza, aplauso? Tudo isso já tinha sido mas agora não era mais, agora era a vocaç ão. A paixão. E de repente me emocionei: na imagem do lutador de boxe, vi a imagem do escritor no corpo a corpo com a palavra. Se o pensamento verte sangue, desse sangue estão impregnados os livros.

lygia fagundes telles

terça-feira, 9 de novembro de 2010

terça-feira, 6 de abril de 2010

Acho que a cadência e a melodia dos meus versos se aproximam da música angustiada de Mahler, sobretudo da Quarta Sinfonia, com aqueles motivos se desenvolvendo, se entrelaçando, sem que haja solução final. Ele corta de repente a progressão sonora: parece que a lua caiu no chão.

mario quintana
(conversa com quintana - reinaldo moraes)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Menino, deixa de anarquia, dizia minha velha tia ranzinza quando eu fazia alguma coisa errada, aprontava alguma travessura. Anarquia, ali, não tinha nada a ver com anarquismo, mas sim com a capacidade sobretudo das crianças ou daqueles que mantêm a alma juvenil de dar uma esculhambada básica para tornar a vida mais leve, aceitável. Em paulistês, anarquia é isso

E assim era o Glauco, assim são os personagens do Glauco, em permanente anarquia para rir da vida e de si mesmo.

Difícil pensar em vida leve e aceitável para falar do Glauco agora que ele foi morto a tiros junto com o filho, numa tragédia medonha. Difícil lembrar o quanto ele era engraçado, o quanto anarquizava seus amigos e colegas de trabalho, entre os quais me inclui durante anos, com todo o orgulho do mundo. Talvez fosse o caso de deixar as histórias engraçadas para outro dia, mas vou assumir o risco da heresia, porque o que rola é admiração, respeito e desde já saudades.

Na Folha de São Paulo, onde vivi em tempo integral 21 anos, o Glauco era, ele mesmo, um personagem. No tempo em que os desenhos de cartunistas e chargistas eram feitos na base do papel e caneta, virava e mexia lá estava aquele cara magrelo com um envelope pardo na mão, entrando meio que furtivamente pelos corredores do quarto andar da Alameda Barão de Limeira, 425, sede da Folha. Sempre, sempre e sempre tinha uma piadinha, um sarrinho para tirar, e eu, entre outros, costumava ser uma de suas vítimas, assim como o editor de arte Jair de Oliveira (vítima preferencial), o desenhista Emílio Damiani, o Carlos Alberto Faraó, também editor, o Orlando, entre outros. O humor era sua arma sobretudo quando ele estava atrasado com seu trabalho – e ele sempre estava atrasado com seja lá o que tivesse que fazer para o jornal.


Numa ocasião, ele tinha que produzir uma charge para a editoria de política e não aparecia. Desesperado, o editor foi ao secretário de redação, Caio Túlio Costa, dizendo que o Glauco não entregara seu trabalho e que não havia o que colocar no lugar. Depois de muitas ligações, Caio conseguiu localizar o artista ao telefone. Diálogo que rolou, logo depois reproduzido pelo Caio:
- Glauco, cadê a charge?
- Não fiz.
- Como não fez? Venha para cá e traga imediatamente o desenho.
- Não vou!
- Como não vem, vem sim!
(gritando)
- E se eu não for?
- Se não vier será demitido!
(gritando mais ainda)
- Ah, é?
- É, sim!
- Então eu vou...

Uma hora depois, mas ainda a tempo de entregar a charge, lá vem o Glauco se esgueirando pelos cantos, para não ser visto pelo Caio. Mas não adiantou nada, porque todos os desenhistas e arte finalistas que estavam na redação tinham elaborado desenhos reproduzindo a situação e montado um grande mural em homenagem à “coragem” do Glauco. Quando ele chegou, levou uma tremenda vaia e foi obrigado a ver todos os desenhos. Um deles retratava o cartunista com um saco de supermercado na cabeça, com dois furos para os olhos, dizendo: - Oi, Caio, cheguei!

Outra história engraçada, acho que contada pelo Angeli, o que significa que tem grande chance de ser mentira, é que um dia policiais de um camburão prenderam o Glauco. Alegação: suspeito. Sim, era um tempo, anos 80, em que ser suspeito, seja lá o que isso significasse, era suficiente para ser detido, embarcado no chiqueirinho da viatura, tomar umas bordoadas, quando não acontecia coisa pior. E o Glauco era o típico suspeito, portanto, como ele sempre dizia, “mãozinha na cabeça” e já para a gaiola, com direito a apenas uns safanões.

Por sorte, um dos policiais era fã dos desenhos do Glauco na Folha, mas não acreditou minimamente que aquele cara fosse ele. Glauco insistiu que era ele mesmo e pediu papel e caneta e começou a desenhar para os policiais, reproduzindo justamente a situação que estavam vivendo, com o mãozinha na cabeça e tudo. Depois de muitas risadas, os tiras acabaram deixando o “suspeito” na porta do jornal, depois de pedirem para ele autografar os desenhos.

Quem conhece os personagens de comportamento sexual bizarro do Glauco certamente alguma vez ficou imaginando onde aquele cara arranjava tanta besteira para falar, certo?


Imagine só se esta cena não dá um cartum: como era e ainda é praxe na Folha, uma autoridade da qual não me lembro foi recebida em almoço no 9° andar do jornal. Também era praxe, o visitante seria acompanhado até a portaria. Como executivo do jornal, lá estava eu junto ao visitante, mais o “seu” Frias, publisher da Folha, o diretor de redação, Otavio Frias Filho, e mais um ou dois editores dos quais também não lembro. Na descida, o elevador para no andar da redação e quem entra? Claro, o Glauco. Vendo-me todo engravatado e muito formal, ele conteve a piada e foi logo para o fundo do elevador, onde ficou quietinho. Por pouco tempo: assim que o elevador parou no térreo, e sem que ninguém percebesse, ele deu uma tremenda passada de mão na minha bunda e saiu de fininho, com aquele sorrisinho sacana nos lábios.

Mais uma: domingo de carnaval, plantão na redação, poucas pessoas trabalhando, eu era responsável pelo fechamento do jornal e da primeira página. Toca o telefone, o funcionário responsável pela portaria:
- Olha, tem um vagabundo aqui dizendo que é artista e querendo entrar de qualquer jeito. Eu ia chamar a polícia, mas ele disse que conhece o senhor...
- Quem é o cara?
- Ele não quer mais falar comigo. O cara está de camiseta sem manga, bermuda, sandália havaiana, diz que é artista e que precisa fazer um desenho pro jornal de amanhã. Acho bom o senhor vir até aqui, porque esse cara eu não deixo entrar, não...

O diagramador que estava trabalhando ao meu lado, ouvindo a conversa toda, logo matou a charada: - É o Glauco. A charge de amanhã é dele...

E lá fui eu para a portaria, encontrando o porteiro, enorme, a ponto de enfiar a mão na cara do magrelo irreverente. Bem, foi um custo convencer o funcionário de que aquele sujeito que tinha acabado de sair de um bloco carnavalesco naquele estado era mesmo o responsável pela charge política da página mais nobre do jornal. Mas como eu assumi a responsabilidade, o rapaz acabou liberando o suspeito e como sempre, ele acabou produzindo uma charge impagável, irreverente e mordaz. Como ele.

Em 2004, pouco antes de deixar a redação, encontrei pela última vez o Glauco. Me deu um abraço carinhoso, obviamente fez uma piadinha com minha falta de cabelos e me convidou para conhecer sua comunidade religiosa. Eu perguntei:
- Mas como você consegue ser um líder religioso e fazer esses desenhos tão loucos?
- Qual o problema? A vida é assim mesmo...

Pois é, meu amigo, a vida é assim mesmo.

E, de um jeito ou de outro, acaba.


luiz caversan - glauco e a arte da anarquia
pensata - folha on line

quinta-feira, 11 de março de 2010

Em 1950, passando por São Paulo a caminho do mar, pretendendo fugir num navio qualquer, assisti Anjo de Pedra, de Tennessee Williams, no TBC. Não sei se ainda chocado com o rompimento com meu mundo familiar, um pouco intimidado com a perspectiva de me empregar num navio e sumir no mar, tudo o que se debatia dentro de mim me levou a sentir uma paralisação diante de um momento de extrema beleza: Cacilda Becker interpretando a personagem Alma. Procurei-a depois do espetáculo e contei tudo o que me confundia, que me desnorteava de maneira desesperante. No dia seguinte, ela me ouviu pacientemente, durante horas. Eu era um moço estranho, problemático, irritadiço, que se sentia marginal, estrangeiro no meu meio, de diálogo difícil. Mas, diante dela, tudo veio à tona, e eu me revelei inteiramente. Depois de horas de confissão, ela me disse: “Por que não entra na Escola de Arte Dramática? Creio que o teatro poderá ser a sua expressão, mas não pense em representar”. Olhou-me bem firme nos olhos e disse, como se descesse dentro de mim: “Tenho certeza de que o seu caso é escrever”.

A minha família pertence ao mundo da aristocracia da terra, família de fazendeiros. Fazendeiro é coisa que nunca fui, nem sou depois de liberto. Posso ser um “fazendeiro do ar”, na classificação de Carlos Drummond de Andrade. Naquela ocasião eu não sabia o que era, embora procurasse ansiosamente saber e, por isso, vivia em constantes conflitos. Até que o choque chegou num tom de exasperação, e eu parti em busca do mar. O conselho de Cacilda foi a âncora que me fixou ao pé da serra. Desde então tenho procurado vencer um outro tipo de mar, o mar muitas vezes traiçoeiro da sensibilidade criativa.

É preciso ter visão sociológica para saber o que é uma família tradicional da terra, como a família Junqueira, que é a minha. Meu pai, autêntico representante dessa família, tinha três grandes valores: o cavalo, o cachorro e a caça. A caçada era o esporte do homem da terra. Nesse meio agreste, de caçadores, de couros e penas abatidas, de toque de cachorrada, de corridas desabaladas nos cerrados, nos campos e nas matas, de homens que se atiravam dentro de qualquer rio para cercar suas caças, nesse mundo que ainda não conhecia o rádio, a televisão e muito menos a arte, de pessoas que só erguiam os olhos, não para contemplar as estrelas, mas para saber se choveria durante a noite para que as semeaduras brotassem e no meio delas as caças deixassem seus rastos; nesse mundo de paixões violentas, o que poderia representar um garoto que amava os livros, se comovia com a música e que, caçando, torcia pela caça? Nesse continente de prazeres primitivos, como poderia viver um ser que amava as estrelas, que só via as pastagens no entardecer como telas enquadrando a beleza da paisagem, que na mata admirava as árvores que a pintavam floridas, que se condoía com os peixes fisgados, com as aves abatidas, que tinha sensibilidade que aquele mundo não podia compreender e, o pior, levantava suspeita sobre ele? Como não nascer conflitos entre esse ser e o mundo que o rodeava e que tentava modificá-lo?

Devo confessar uma coisa: desde pequeno, enfrentei esse mundo de igual para igual no que diz respeito à determinação de ser. Ele não me agrediu mais do que eu o agredi. Defendi com unhas e dentes, como fera acuada, todos os meus valores, e é natural que os conflitos aparecessem e fossem dilacerantes, porque eu era um adversário à altura. Esse mundo era violento quando me agredia, e eu também era ao me defender. Assim, os choques foram terríveis: matei tanto quanto fui morto.

A reconciliação com esse mundo foi completa e profunda, na medida em que ele é o principal tema de tudo que escrevo. Se não conseguia viver nele, nem aceitar seus valores, vivi através das obras escritas, recriando aqueles valores literariamente. E é sendo o que sou, como dramaturgo, que provo ter sempre pertencido a ele, como continuo pertencendo artisticamente.

Quanto a meu pai, com quem tanto lutei, acho bastante revelador o que aconteceu quando ele veio a São Paulo assistir A Moratória, minha primeira peça encenada profissionalmente. Ele me pediu que não fosse com ele ao teatro, mas que o encontrasse depois da sessão. Enquanto esperava, fiquei vagando pelas imediações do Teatro Maria Della Costa. Quando as pessoas começaram a sair, me postei na calçada, bem em frente à entrada. Ele veio lá de dentro sozinho, chegou perto de mim, passou o braço no meu ombro e descemos a rua Paim em direção à Nove de Julho. O silêncio era cheio de perguntas que determinariam respostas definitivas e reveladoras. Na esquina da Nove de Julho, onde havia um muro cercando um terreno vazio, ele me puxou, me abraçou e rompeu em soluços. Fiquei aguardando, hirto, quase petrificado. Não sabia o que dizer, embora sentisse uma profunda alegria. E, bem no meu ouvido, porque estávamos abraçados, ouvi sua voz embargada: “Eu não sabia, meu filho, eu não podia compreender. Peço que me perdoe. Há muitas maneiras de se amar as mesmas coisas. Eu sou um fazendeiro atrasado. Eu não podia compreender.” Essa era a reconciliação com o ser humano, porque a outra, com o mundo da terra, ficara viva lá no palco.

Foi minha única peça a que ele assistiu: morreu um ano depois. Tínhamos começado a dialogar, depois de 34 anos de conflitos. Mas quando o diálogo ia realmente se aprofundar, a morte o interrompeu. Por isso, acredito que tudo vai continuar como era, porque meus sentimentos só poderiam ser mudados pelo diálogo começado, mas não desenvolvido. É assim que, literariamente, continuo dialogando com ele e com seu mundo. Esta é a minha verdadeira condição de autor: continuar buscando o pai perdido dentro de mim. Mas ele se esconde como as caças matreiras, corre rasto atrás, confundindo suas pegadas, mantendo-me prisioneiro de uma busca sem fim. Essa busca incessante é a dinâmica da minha criação literária, mesmo sabendo que só procuramos o que já encontramos, paradoxo terrível de uma criatividade que atormenta e me empurra sempre para frente, atazanando como a mosca de Io.

jorge andrade (1922/1984) - dramaturgo

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos líquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

acorrentados (o amor acaba – crônicas líricas e existenciais)
paulo mendes campos
blog apocalipso – cecilia gianetti - folha on line